Miguel de Rio Branco: Dualidade e Apagamento…

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foto do pavilhão de Miguel de Rio Branco em Inhotim
Pavilhão Miguel de Rio Branco em Inhotim

De onde vem a Dualidade

Miguel de Rio Branco é artista e fotógrafo, e seu trabalho me impressionou bastante. Assim, Neste post pretendo deixar algumas indagações e reflexões sobre sua obra. Sobretudo, minha visita ao seu pavilhão no museu de Brumadinho.

Decerto, é inevitável o fascínio pela beleza e força do trabalho de Miguel de Rio Branco. Suas fotografias não são meros registros de pessoas, luz ou lugares; suas escolhas de composição, temas, cor e iluminação transformam suas imagens em construções simbólicas e deixam de ser literais. Enfim, sua busca em ressaltar e mostrar o âmago do ser humano é evidente. As formas que retrata os corpos e objetos, nos fala da decadência humana, do obscuro na nossa psique, dos medos e do mal que corrompe.

Igualmente, a sua busca do belo na justaposição do sujo, deteriorado ou envelhecido, suas projeções em suportes instáveis… Tudo isso traz as suas instalações e fotografias uma riqueza que nos tira do lugar comum; em um mundo repleto de imagens, Miguel nos faz parar para olhar. E enquanto nos captura de forma visceral, nos faz pensar sobre a vida e a morte.

Vista da expoisção de Miguel em Inhotim

Em minha visita a Inhotim, busquei ao máximo que toda a experiência fosse livre de influências exteriores. Alguns artistas e seus pavilhões eram desconhecidos para mim. Portanto, não sabia o que esperar quando avistei a construção de ferro em meio a uma bifurcação na ladeira do eixo Rosa.

Então, impressionado (de forma negativa), iria perceber depois, que esta estrada ligava também ao pavilhão de Claudia Andujar; e que esses dois artistas seriam os únicos filtros de registro da existência do preto e dos povos nativos nesse país. Surpreendentemente, no maior museu de arte contemporânea da américa latina.

O olhar estrangerio e o preto como assunto

Como resaltei no post “A arte como poder”, é pela câmera que entra em destaque a vida de outros que não são de origem europeia. Mas… como assunto e não protagonista. As marcas de como o Homem Brancoé predatório e destrutivo, é o que mais me chamou atenção de fato.

Tanto no caso de Rio Branco, quanto o de Andujar, as imagens escolhidas são de certa forma negativas. Não buscam falar de grandeza, de riqueza ou do melhor que esses povos tem. Porém em Rio Branco, os cliques são em suas cicatrizes, na deterioração do modo de vida, na violência em que vivem aqueles corpos.

imagem de moradores do Pelourinho de Miguel
imagem do final da decada de 70, Pelourinho Salvador.

Em “Nada levarei quando morrer, aqueles que mim devem cobrarei no inferno“, “documentário-poético”. Que tem uma sala em seu pavilhão, Rio Branco registra com uma filmagem intrusa, o cotidiano da vida de corpos marginalizados em Salvador. Suas ruas sujas, casas aos pedaços, sem higiene. Os moradores têm um olhar perdido e apagado; estão sob efeito de drogas, álcool e entregues ao estado animal: violência, sexo e sangue, são tudo que parecem ter.

foto de dois garotos jogando capoeira
parte da série de fotografias de garotos jogando capoeira em salvador

Enquanto assistia ao vídeo comecei a relembrar as séries de fotos no subsolo do pavilhão. 90% dos materiais eram os registros de um homem branco, de classe alta, filho de diplomata, que viveu mais fora do Brasil que aqui; falando sobre pessoas negras, vítimas da escravidão, do racismo e do apagamento enquanto indivíduos e enquanto pessoas. Branco, em uma de suas justaposições, coloca a imagem de um garoto negro, sujo, descalço abaixo de a de um cachorro também sujo e sarnento.

Assisti o documentário do começo ao fim, e enquanto estive lá, fui o único visitante que fez isso.

Enquanto suas fotografias registram de forma acusatória e alienígena, de forma bela, porém triste o horror daqueles corpos. Os sorrisos desdentados, cicatrizes profundas, nus de mulheres despenteadas/desesperadas, com olhos fundos e corpos desnutridos, doentes. São testemunhas do apagamento que esses corpos foram imposto. Então, quando vamos ler os textos de parede, descobrimos que ele trocou os ensaios por monóculos fotográficos (como os portugueses trocando espelhos com os indígenas). Aliás, é triste pensar que aqueles monóculos eram a única afirmação de existência e de observação de si mesmos que aquelas pessoas iriam ter.

Uma raiva e dor foi crescendo dentro de mim, pela tristeza daquelas vidas, mas também pela crueldade de todo aquele sistema. A arte como poder… Para um cara como Rio Branco desfrutar de prestigio, riqueza, e reconhecimento, bastou ele registrar a imagem de vidas pretas sendo destruídas. A sua arte em essênsia, dependeu de 400 anos de escravidão, estupro, mutilação, assassinato, eugenia e racismo. Como se em um experimento macabro… um continente inteiro servisse apenas como COBAIAS para produzirem material para um rapaz com olhar “sensível” para o mundo…

Assisti o documentário do começo ao fim, e enquanto estive lá, fui o único visitante que fez isso. Os outros ficavam por apenas alguns minutos e em confronto com aquela realidade, saiam e seguiam para as outras salas. Fiquei mais um pouco, para ver se mais alguém iria assistir aquele espetáculo cruel e coroado com destaque naquele prédio enorme. Mas não, ninguém ficou.

Por que com a gente pode?

Nós conseguimos encontrar várias fotos sobre o holocausto judeu na internet. Porém dificilmente esses registros são colocado como obra de arte em galerias.

Mas se for um holocausto de pessoas pretas… esse é permitido ser usado como bem se entender. Me senti extremamente enojado saindo desse pavilhão. Sentei-me em uma mesa e comecei a escrever sobre aquele prédio macabro e da visão horrenda dos curadores de Inhotim e do próprio Miguel.

E então, fui me lembrando dos outros visitantes lá dentro. Grupos de estrangeiros e também brasileiros brancos, sorriam, tiravam selfies em frente ao garoto comparado com cachorro sarnento. Se impressionavam com a moça despenteada com cicatrízes enormes próxima aos seios, apontavam e comentavam, sorriam e saiam andando. Achando tudo lindo, magnifico… E eu sentia apenas nojo… Depois, olhando as fotografias da viagem não encontrei nenhuma foto daquela exposição.

Por um lado, o valor histórico (do documentário e fotografias) são de grande importância. São registros únicos da época e das pessoas que viveram no Pelourinho de 1979. Pessoas que eram invisíveis e viviam suas vidas pelo resto, o que sobrou.

Por outro lado, quando se ergue um museu para a decadência humana elevando ao status do romântico e do Belo e Verdadeiro. Mostra o quanto de desigualdade e racismo separam a arte, o povo preto e os meios de distribuição e afirmação.

Mas esse é apenas um exemplo de como somos apagados e de como o homem branco conta nossa história… infelizmente.

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