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afro-surrealismo

O Afro-surrealismo – o deslocamento do negro em um mundo branco.

“Mano… que surreal isso, não tô acreditando no que ta acontecendo!”

Primeiramente, vivendo no Brasil, essa frase é bem comum de ser dita diariamente. Não é difícil sentir a barreira da realidade dilatar diante de situações improváveis, injustas ou permitidas por regras invisíveis. Para uma pessoa negra, então? Uma camada a mais de irrealidade é adicionada em todos os campos da nossa vida. Se uma pessoa negra falar de sua realidade, tudo é afro-surrealismo.

Ou seja, nossas experiências são responsáveis por criar nossa percepção da realidade, muitas vezes nossos filtros sensoriais não são capazes de compreender situações, sensações, imagens, sons e sucessão de fatos. A compreensão do que é realidade é medida de acordo com as nossas crenças e convicções. Apesar de facilmente sermos enganados por nossos sentidos, a autoestima do ser humano e seu ego, lhe diz que a nossa mente e nossos sentidos são parâmetros confiáveis. “Eu vi com esse olhos que a terra há de comer”. “Eu não tinha bebido nada, naquele dia, estava sóbrio, pode confiar!”

Ou seja, acreditamos verdadeiramente em nossa capacidade de sentir a realidade. E essa certeza é uma ilusão em si, criada por nosso cérebro.

A arte como quebra da ilusão

Antes de mais nada, você já se perguntou quando uma ilusão te fez se dar conta da realidade?

Muitas vezes na infância, não temos a capacidade de distinguir o que pode ser ilusão ou engano dos nossos sentidos. Por isso somos tão influenciados por histórias, imagens e sensações. Afinal, indefesos em um mundo desconhecido, os monstros de baixo da cama, fantasmas, o velho do saco, a Kombi dos palhaços ou a loira do banheiro são seres vivos e possíveis para uma mente infantil. Assim como a fada do dente, coelho da pascoa e Papai Noel.

Da mesma forma que não entendemos a existência dos raios, o sol, estrelas, televisão, celular, ou um queijo; Também desconhecemos os mecanismo que podem fazer um vampiro ser ou não real.

Portanto, para mim, é ao entrar em contato com a ilusão, que vamos criando parâmetros para mediar a realidade. E além de ir nos tornando menos ignorantes quanto aos mistérios do mundo. Também vamos tomando conhecimento da falibilidade dos nossos sentidos e como nosso cérebro os traduz.

Ou seja, a arte é um grande fator na quebra da ilusão; Ironicamente, ela faz isso justamente criando simulacros e experiências de realidades, ou percepções de realidades dos outros. Muitas vezes tentei despertar meu chacra, elevar meu KI, despertar meu poder de voar – por influência de desenhos animados; Rezava a noite ante de dormir temendo deus e o inferno; tentava mover objetos com a mente, ou me comunicar por telepatia…

A quebra

Ao falhar em produzir um Hadouken eu aprendi que existe um limite claro entre a imaginação, a ficção dos desenhos animados e o mundo a minha volta. Assim como minha vó vasculhar o banheiro junto comigo em busca do fantasma da loira, me fez enfrentar o meus medos acendendo a luz,

Uma história que ilustra bem essa ideia é a anedota contada sobre a primeira exibição da filmagem de um trem em movimento: Muitas pessoas na plateia saiam correndo da sala, pensando que iam ser atropeladas pelo trem. Mesmo que na época, um vídeo não poderia reproduzir a realidade em cores, sons e texturas, o simples reconhecimento de um objeto veloz indo em sua direção pode fazer seu cérebro acreditar que a cena faz parte do real.

Em suma, através de pinturas, músicas, filmes ou o simples ato de ouvir uma história nos coloca em contato com a percepção do mundo visto, sentido e relatado por um outro alguém. Nesse momento, através da identificação, ou pela descoberta de algo novo, a nossa própria realidade muda. Sendo assim, é nesse eterno embate entre nossa crença de realidade e a realidade além de nós, que podemos quebrar algumas das ilusões que nos rodea.

O Surreal de Octávio Araújo e como me influenciou

Primeiramente, não consigo dizer qual fascínio me veio primeiro em relação a arte. O poder do realismo – Apreender o mundo como ele no desenho, capturar imagens e grava-las no papel? Reproduzir criações artísticas de objetos, estampas e livros? Ou o fantasioso e surreal – Animais encantados, superpoderes, passagens para outros mundos, parar o tempo, voltar ao passado?

desvairo de um iconoclasta
Desvario de um Iconoclasta, 1974 – Octávio Araújo

A pintura acima, de Octávio Araújo, foi uma das primeiras obra de arte que me deixou fascinado e com vontade de pintar e desenhar. Desde que a descobri no livro “A mão Livre” de Philip Hallawell quando tinha 10, 11 anos, tudo mudou para mim. Primeiramente, podemos ver um pouco deslocado do centro, um retrato rasgado, mostrando apenas uma silhueta de um acadêmico, Sua imagem descolada cai sobre um chão de madeira pegando fogo, ladeado de pão, escorpião, rato e um caixa de fosforo. O Fundo da imagem reúne elementos arquitetônicos a imagem de uma mulher como uma musa clássica, ao longe uma paisagem.

Identificação

A primeira coisa que me impressionou foi a técnica da pintura, cores, texturas e representações ultrarrealistas da natureza, objetos e animais. Depois a imagem fantasiosa, metalinguística de pintar uma pintura, as tonalidades de um “dia perfeito”. Por último, lembro até hoje de notar a caixa de fósforos da marca “pinheiro” e o reconhecimento de algo do meu universo presente naquela imagem que pensei ser de longe (no tempo, e no espaço), explodiu minha mente. A partir desse encontro, eu não queria dominar as técnicas de desenho para reproduzir o mundo como ele era, mas sim como eu o sentia. Criando a partir dos elementos da realidade, um novo mundo.

Foi alguns anos depois que descobri que Octávio era um artista negro e brasileiro, ao ver seu retrato na Pinacoteca de São Paulo. E então, com acesso a internet, consegui fazer uma pesquisa mais profunda sobre seus trabalhos, sua vida e fui ainda mais influenciado por sua arte. Até mesmo tentei achar algum contato dele, ao saber que ainda estava vivo na época. Porém não consegui esse encontro.

Intenção – 2003 Diogo Nógue

Foi a partir de Octávio que fui apresentado ao conceito de imagem surreal. Inspirado em suas litografias estudava o desenho em preto e branco com grafite. Assim como Araújo a representação de pessoas brancas como o padrão do meu universo visual ficou muito marcada. Durante muito tempo não notava essa forma de dominação do racismo em meu subconsciente. Mesmo tendo uma família com consciência racial, nascer em uma sociedade em que o negro é excluído da cultura em todos os aspectos, afeta nosso subconsciente e coloca barreiras invisíveis.


o racismo em nossas mentes

Octávio estudou em escolas tradicionais no Brasil e na Europa, e certamente seus materiais de estudo e referência de artistas eram todos brancos. Se casou com uma alemã durante uma de suas moradas por Bolsas de estudos. Sua esposa se tornou sua musa em muitas de suas pinturas. Tentando se inserir no contexto de arte brasileira, talvez sentisse que para ser reconhecido pelo circuito de arte, teria que “ser três vezes melhor que um artista branco”.

Em suas temáticas explorava a mitologia grega com toques esotéricos, metafísicos, alquimistas e eruditos. Deixando escapar em poucos momentos simbolismos da cultura afro. Certamente, era muito doloroso para ele tratar de sua negritude. Ser um “artista negro” é uma escolha nos dias de hoje, porém naquela época, era uma afronta. Ao mesmo tempo que se pedia essa ousadia de grandes negros, também era a armadilha desejada para joga-los no ostracismo. Como homem negro, entendo o quando é frustrante saber que mesmo que tenha algum talento, e um bom trabalho, ainda assim a caminhada é difícil de ser vencida.

Autonegação

Eu em minha adolescência e juventude nos anos 90 e 00 tentava fugir dos estereótipos impostos aos negros por vergonha. Como se me sentisse sempre observado e sempre sendo julgado. Tinha vergonha de sentar perto de outros negros na escola, de ouvir pagode, samba e funk. Tinha medo da capoeira e do candomblé. Mesmo gostando da minha cor, dos meus traços, ainda me achava feio e indesejável. Foi uma trajetória de autoconhecimento perceber essas atitudes e desconstruir essa influência colonizadora e racista em minha vida. Imagino então que para Araújo, crescendo ainda sobre a ditadura, e o duro racismo velado daquela época foi muito mais massacrante.

A imagem da negritude tinha sido estereotipada e apropriada por pintores brancos modernistas. Portinari, por exemplo, para qual Octávio trabalhou como assistente, tinha toda sua produção baseada na representação de “Mulatos, mulatas, e índios” a brasilidade pintada por eles era negra e indígena, porém tinha que ser feita por brancos.

A arte de Heitor dos Prazeres por exemplo: Que retratava a cultura negra, tendo o negro como protagonista e narrador de sua história era nomeada como naif e vista como uma arte menor e folclórica. Enquanto os pintores negros acadêmicos dos 1800 até 1990, mesmo dominando com exímio a técnica, estudando na Europa e etc. Foram sempre renegados e sabotados, pois um negro não poderia ser melhor que um branco em uma área que eles consideravam deles.

Dito isso, e voltando ao ponto desta sessão, a arte de Octávio me intrigou também por essa ausência da negritude em suas criações. Além do domínio técnico, as composições oníricas, as representações de metalinguagem mostrando a ilusão e o deslocamento da realidade, se tornaram a base do meu trabalho.

O Surrealismo em minha arte

Como foi dito no começo, viver em uma sociedade racista enquanto pessoa negra, desloca a nossa realidade de uma forma brutal. Vivemos em um mundo de portas trancadas, barreiras invisíveis e códigos não ditos. Cada pessoa negra vai desenvolvendo estratégias para se deslocar e sobreviver nessa realidade alterada, porém não raro e inevitavelmente, batemos de cara em uma parede invisível ou caímos em um calabouço do racismo que não estávamos preparados.

O medo por ser julgado por nossas roupas, cabelo, cheiro, jeito de andar, cores, acessórios e maquiagem que usamos. Tomamos precauções de segurança como andar com as mãos a vista em lojas, não abrir a bolsa em supermercados, estar sempre com documento, abaixar o capuz ou tirar o boné quando avistamos uma viatura ou policial. São só alguns exemplos de atitudes para prevenir embates contra os brancos. Nos tornamos também ótimos analistas de feições, entonações e comportamentos. Um alarme toca no fundo de nossa consciência quando detectamos certas atitudes.

Cada pessoa responde a essas situações de maneiras diferentes, e muitos, pegos de surpresa, não sabem nem como agir.

Espelho

Assim, refletindo sobre como os artistas Salvador Dali, Magritte e De Chirico influenciaram meu trabalho e instigaram minha imaginação, cheguei a conclusão que pelo estranhamento, quebra de realidade, e o deslocamento da realidade, traduzia uma angustia que sentia sobre minha própria existência no mundo. Portanto, recortes, silhuetas, sombras, reflexos distorcidos, a falta, transparência, espaços desertos, falavam com meu inconsciente e davam forma a uma sensação que palavras não podiam traduzir.

Sendo assim. ao primeiro contato com uma pintura Surreal ou metafisica, nosso cérebro reconhece estruturas, texturas e significados, porém rapidamente tomamos consciência que as coisas estão fora do lugar, um estranhamento e uma quebra da ilusão são notadas. O que nos faz olhar novamente para imagem, e ela se revela para nós, um outro universo.

Seja pela perspectiva, volume, cores, texturas, o que nossa mente traduz como realidade é quebrado. Desta quebra o inconsciente, sentimentos e a leitura simbólica se potencializa. Cria-se uma comunicação da linha dos oráculos, ao mesmo tempo mental e mística.

Essa estratégia se encaixava muito bem com a minha timidez, falta de autoestima e sensação de não pertencimento que não sabia nomear e nem enxergar como consequência de ser negro em um mundo em que era intruso.

Tentar me expressar em enigmas, simbolismos, modos de escrita antiga (como runas), imagens com referência aos pintores surrealistas, e a representação do branco como padrão foram um caminho natural. Foi só no final da minha conclusão de curso na faculdade que comecei a refletir sobre a estética, embasamento teórico e qual seria a relação com minha negritude.

O encontro: Minha arte é Afro-surreal

Na academia aprendemos a nomear as coisas e coloca-las em linhas de pensamentos, famílias, conceitos e territórios. No meu TCC encaixei minha pesquisa na linha entre o romantismo (com uma paixão e fascínio pelo passado – que pra mim se traduzia na busca pelo legado dos meus ancestrais, saber de onde vim e quem foram os que me trouxeram aqui), as composições e temáticas Surrealistas ( a valorização do sonho, memória e teoria psicanalíticas como formas de compreender a mente humana e como se dá a criação de simbolismos) e por último o neoexpressionismo que vai trabalhar uma nova forma de pensar a construção da imagem – utilizando objetos do cotidiano, matéria, terra, vegetação e outros, para compor o corpo pictórico em grandes formatos. Como temática, um mundo de desesperança, reflexo de guerras, mortes, desigualdades. Cheio de cinzas, poeiras, e escombros. Algo muito comum para nós negros.

Como arcabouço teórico essas escolas saciaram meu orientador e também os avaliadores da banca. No entanto, para mim ainda não conseguia definir muito bem em que lugar minha arte atuaria, com quem, como, onde e para quem eu estaria falando.

Então, foi só depois da minha viagem à Inhotim em 2018 e a segunda visita a exposição de Basquiat em Belo Horizonte (episódios que discutir em textos e no video sobre a exposição O que nunca vão apagar) que comecei a construir uma direção para minha arte. Levando em conta ser um artista negro, periférico, independente, hetero, cis no Brasil atual.

Despertar

Um primeiro despertar foi o Afrofuturismo, imaginar possibilidades do povo preto para além das dificuldades do racismo, colonialismo e capitalismo. Mas também existências em que não fomos ceifados. Abriu um novo universo em minha mente. Principalmente na escrita, contar histórias que nascem de uma premissa tão forte como o afrofuturo acendeu uma chama em mim.

Do mesmo modo, essa corrente da cultura pop veio ganhando muito destaque nesta década, o que fez surgir maravilhas como o filme Pantera Negra, divisor de aguas na cultura mainstream do cinema, não só no subgênero de super-heróis. Mas que vai afetar todas as novas gerações. Que diferente de mim e do Octávio Araújo, não serão podadas pela falta de representatividade, ou falta de autoestima com a cultura africana e afro-brasileira.


O segundo despertar veio como uma bomba, após assistir a Série Atlanta – de Donald Glover. Principalmente as duas ultimas temporadas que levantaram discussões por seus roteiros enigmáticos que fugiam da realidade como conhecemos.

Eu já sou fascinado por narrativas assim. Antes de tudo, aqui na américa latina o realismo-mágico foi um movimento potente e inovador na literatura, o qual eu tenho bastante apreço.

Portanto, minha epifania veio ao procurar as discussões sobre a série e encontrar o termo Afro-Surrealismo. Principalmente pela simples adição do prefixo muda tudo e enche de significados. E ainda mais, saber que existe um movimento e um manifesto de outros criadores negros que pensam sobre essa questão e que conseguiram traduzir esse deslocamento das pessoas pretas com a realidade a nossa volta.

Me assustei, era muito obvio. Afro-surrealismo! é isso.

Então, para finalizar, deixo aqui abaixo alguns pedaços do manifesto e o link para o texto completo de D. Scot Miller traduzido por Yuri Costa

Manifesto Afro-surreal

  1. Vimos esses mundos desconhecidos emergirem nos trabalhos de Wifredo Lam, cujas origens afrocubanas inspiram trabalhos que falam de velhos deuses com novos rostos, e nos trabalhos de Jean-Michel Basquiat, que nos deu novos deuses com velhos rostos. Ouvimos este mundo na trompeta-ebó de Roscoe Mitchell e nas letras de MF Doom. […]

2. O Afro-Surreal pressupõe que, além deste mundo visível, há um mundo invisível lutando para se manifestar, e é nosso trabalho revelá-lo. Como os Surrealistas Africanos, Afro-Surrealistas reconhecem que a natureza (inclusive a humana) gera mais experiências surreais do que qualquer outro processo poderia produzir.

3. Afro-Surrealistas recuperam o culto ao passado. Nós revisitamos tradições com novos olhos. nos apropriamos de símbolos da escravidão no século XIX, como Kara Walker, e da colônia do século XVIII, como Yinka Shonibare. Re-apresentamos a “loucura” como visitas dos deuses e reconhecemos a possibilidade da magia. Nós assumimos as obsessões dos antepassados e incitamos o des-conforto, clareando a névoa da inconsciência coletiva enquanto este se manifesta nesses sonhos chamados de cultura.

Chega! Queremos sentir alguma coisa! Queremos chorar em público

Série Pesadelos negros – Diogo Nógue

4. Afro-Surrealistas usam o excesso como única maneira legítima de subversão, a hibridização como forma de desobediência. ´[…] Consortium expressam este extravasamento.
5. Afro-Surrealistas distorcem a realidade em favor do impacto emocional. […] Chega! Queremos sentir alguma coisa! Queremos chorar em público.

6. Afro-Surrealistas se esforçam pelo rococó: o belo, o sensual e o caprichoso. […] cuja observação sobre o corpo negro masculino se aplica à toda cultura e à toda arte: “Não existe imagem objetiva. E não há maneira de observar objetivamente a imagem em si”.

7.[…]

8. Afro-Surrealistas são ambíguos. “Será que sou preto ou branco? Será que sou hétero ou gay? Controvérsia!”
O Afro-Surrealismo rejeita a servidão silenciosa que caracteriza os papéis existentes para afrodescendentes [African Americans], descendentes de asiáticos, latinos, mulheres e pessoas queer. Apenas através da mistura, da fusão e da troca [cross-conversion] entre essas supostas classificações poderá haver esperança de libertação. O Afro-Surrealismo é intersexual, afro-asiático, afrocubano, místico, tolo e profundo

9. […]

10. […]

11. Afro-Surrealistas criam deuses sensuais para destruir belos ícones em ruínas.

Concluindo

Em suma, o afro-surreal é o agora visto pelos olhos das pessoas negras; Uma realidade paralela que vivemos sob domínio e controle da supremacia branca, que tenta usurpar todas nossas invenções e genialidades; O Afro-surreal é uma linguagem para nos comunicar com nossos em uma frequência que os brancos não entendem. Sobretudo, o prefixo Afro cria uma nova dinâmica, resgata nossa origem, nosso passado e nos desperta para nós mesmos. Não deixa dúvidas, não queremos aprovação, não queremos ser aceitos, tolerados. Antes de tudo, queremos ser, nossos e para nós mesmos.

Busca ao tesouro – Diogo Nógue

Inhotim – A arte como Poder

Inhotim – A arte como Poder

Território é um dos principais elementos de poder. Os animais e nós, seres humanos descobrimos que é o mais importante.

Inhotim é em primeira instância este tipo de demarcação, em segundo lugar é uma exaltação do poder do dinheiro e por último, a Arte vem para reforçar os dois primeiros ícones de poder. Como sempre foi. Território, dinheiro e Arte = Poder.

Podemos pensar em todo Museu como demonstração de poder. A coleção de objetos e preservação da memória (muitas vezes de “conquistas”, roubos…).  Possuir o conhecimento, assim como as “relíquias” que o represente, torna a sociedade que os detém mais sofisticadas. Transformar coleções particulares em públicas (ou emprestá-las), da notoriedade e acrescenta o valor das peças.

A cada passo em Inhotim essa ideia é martelada e parece ser sussurrada junto com o canto dos pássaros, insetos e os animais que passam correndo pelas arvores. O Museu é sobretudo um grito de poder branco à brasileira, que se espelha sempre na Europa e Estados Unidos.

É um retrato fiel da estrutura racista brasileira, partindo da origem do dinheiro e patrimônio do seu idealizador, passando pela forma que o acervo conta a história e fala sobre arte, até chegar nas placas de empresas patrocinadoras e o claro caráter corrupto de sujeira impregnada em cada prédio arquitetônico, jardim paisagístico e lago artificial.

Desvio para o vermelho – Cildão

Após essa introdução, quero aqui fazer uma análise da experiência estética que foi a visita ao Museu e Jardim Botânico de Inhotim, vendo o parque todo como passível de leitura conceitual.

Em primeiro lugar a visita a Inhotim é maravilhosa, e  o deslumbramento define cada segundo lá dentro, grande parte disso é consequência da natureza por si só, as grandes arvores, vegetação natural e animais. Em segundo a mão do homem usada para lapidar e organizar os espaços, jardins, flores, e elementos arquitetônicos que parecem buscar a harmonia com a natureza.  A cada centímetro encontramos o perfume perfeito, a fotografia mais bela, a luz ideal, as cores mais vivas.

Rouge – Tunga

Em essência, temos a ideia de santuário, e talvez por isso a peregrinação entre os territórios e monumentos em nome das Musas da Arte se faz tão querente. Cada prédio que abriga uma ou algumas obras de arte parecem querer dar razão para a existência não só dos objetos, mas do próprio fazer artístico. Andamos de “templo em templo” apreciando Ídolos, reverenciando entidades.

A Narrativa de poder é óbvia, sínica e ofensiva, mas procura te distrair com a beleza e encantamento. Novamente o poder do território se faz nos nomes dos pavilhões, afirmando uma história da arte vitoriosa. A grandiosidade é a marca daqui, e talvez a ideia de santuário fique ofuscada pela sensação de calvário.

Para um branco, a visita ao Museu deve trazer orgulho e talvez até felicidade de “ser brasileiro”. Porém para um artista negro, estar em Inhotim é se sentir estrangeiro no próprio país. Chega a ser cômico olhar toda aquela pantomima, mas a afronta é clara e direta, talvez… só talvez, inconsciente.

Pavilhão Adriana Varejão

Aprendi a apreciar e reverenciar alguns dos artistas imortalizados aqui, Adriana Varejão, Tunga, Lygia Pape, Edgar de Souza, Matthew Barney são os que tenho mais “carinho” e ligação pelas temáticas discutidas. Outros nomes são reconhecidos pelas instituições e colecionadores, que até respeito e compreendo. Porém parecem apenas reforçar a demonstração de Poder, seja no fazer da arte (como furar um buraco de 200 metros no solo para se captar o som produzido, ou fincar vigas de ferro enormes no chão), ou no conceito de possuir e a partir disso demonstrar força.

Em Inhotim o poder de fazer é tão importante quanto o de dominar, o pretexto é falar da arte, de questões do ser humano, mas na realidade é uma ode as mãos brancas. Em primeiro plano temos uma família loira de olhos claros, e como fantasmas e esqueletos em cada parte do parque as mãos negras e indígenas sustentam essa fachada, tanto nas obras quanto nos funcionários, monitores, seguranças e etc.

Pavilhão Tunga

 

São as próprias obras de arte que vão nos contando essa história, em suas lacunas e entrelinhas (como acontece também fora do museu). Em primeiro lugar, a galeria da Adriana Varejão, quase que central no parque, com suas paredes de carne e ossos, azulejos craquelados parece nos dizer que todas as paredes de Inhotim são feitas do mesmo material humano e que se mantém escondido. No vermelho sangue pendurados sob o lago de True Rouge, e também nos esqueleto e caveiras penduradas na Casa de vidro de Tunga.  Como em uma demonstração de culpa cínica, as Galerias de Miguel de Rio Branco e Claudia Andujar com suas câmeras estrangeiras, vão registrar comunidades negras e indígenas sendo afetadas pela mão branca. De maneira um tanto quanto parasita e ofensiva (que merece um texto a parte).

Território é poder, dinheiro é poder, arte é poder – Inhotim é isso, a demonstração do poder fazer, não importando de fato os meios para se fazer. Pois é preciso falar de composição, cor, de espaço, de não lugar, da solidão, da multidão invisível, de cidades derretidas como cemitérios de velas, de pessoas derretidas em cenários de guerra, ou simplesmente a facilidade que o poder te dá de materializar ideias absurdas.  Isso é Inhotim.

(veja algumas fotos que tirei em Inhotim no meu Instagram pessoal)

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