Rio Branco em Inhotim: Museus Precisam Parar de Desumanizar Pessoas Negras.

Olá a todos, faz um tempo que não escrevo por aqui. Estou, desde 2024, desenvolvendo meu mestrado e agora entro na reta final da escrita e desenvolvimento dos trabalhos. Como parte da pesquisa, voltei recentemente a Brumadinho para revisitar o Instituto Inhotim. O museu, que se coloca como um dos maiores centros de arte contemporânea ao ar livre da América Latina, já foi tema de dois textos que publiquei anteriormente aqui no blog: “Arte como Poder” e “Miguel de Rio Branco: Dualidade e Apagamento”. Retornar a esse espaço, sete anos depois da primeira visita, foi tanto um reencontro com paisagens e obras marcantes quanto um confronto com o incômodo persistente provocado por algumas exposições — em especial, a galeria dedicada a Miguel de Rio Branco.

Desde minha primeira visita, em 2018, Inhotim passou por mudanças significativas em sua programação curatorial. A presença de artistas negros e indígenas nos acervos e mostras temporárias tem ampliado perspectivas sobre o que é considerado arte contemporânea e sobre quem pode produzi-la. No entanto, essas adições, ainda que importantes, não eliminam a permanência de hierarquias simbólicas, epistemológicas e raciais que estruturam a narrativa institucional do museu. Em outras palavras, ainda há uma lógica de poder que legitima algumas experiências como “universais” e relega outras ao campo do “testemunho”, da “violência”, do “exótico” ou à reprodução da ideologia dominante, assinadas por pessoas racializadas.

A Galeria Miguel Rio Branco é, para mim, o exemplo mais emblOlá a todos, faz um tempo que não escrevo por aqui. Estou, desde 2024, desenvolvendo meu mestrado e agora entro na reta final da escrita e desenvolvimento dos trabalhos. Como parte da pesquisa, voltei recentemente a Brumadinho para revisitar o Instituto Inhotim. O museu, que se coloca como um dos maiores centros de arte contemporânea ao ar livre da América Latina, já foi tema de dois textos que publiquei anteriormente aqui no blog: “Arte como Poder” e “Miguel de Rio Branco: Dualidade e Apagamento”. Retornar a esse espaço, sete anos depois da primeira visita, foi tanto um reencontro com paisagens e obras marcantes quanto um confronto com o incômodo persistente provocado por algumas exposições — em especial, a galeria dedicada a Miguel de Rio Branco.

Desde minha primeira visita, em 2018, Inhotim passou por mudanças significativas em sua programação curatorial. A presença de artistas negros e indígenas nos acervos e mostras temporárias tem ampliado perspectivas sobre o que é considerado arte contemporânea e sobre quem pode produzi-la. No entanto, essas adições, ainda que importantes, não eliminam a permanência de hierarquias simbólicas, epistemológicas e raciais que estruturam a narrativa institucional do museu. Em outras palavras, ainda há uma lógica de poder que legitima algumas experiências como “universais” e relega outras ao campo do “testemunho”, da “violência”, do “exótico” ou à reprodução da ideologia dominante, assinadas por pessoas racializadas.

A Galeria Miguel Rio Branco é, para mim, o exemplo mais emblemático dessa problemática. A sala exibe, entre outras obras, o filme “Nada levarei quando morrer, aqueles que me devem cobrarei no inferno” (1985), montado a partir de imagens feitas no bairro do Maciel/Pelourinho, em Salvador. A obra mistura registros documentais, cenas de violência explícita, prostituição, cicatrizes, corpos negros nus ou feridos, closes dramáticos e uma montagem que exibe, sem mediação, uma narrativa fragmentada e sensorial, que preza pela crueza. Trata-se de um olhar externo, branco e estrangeiro, que se apropria da dor e da vulnerabilidade de uma comunidade negra para construir uma estética da decadência.

Independentemente da posição ou das intenções do artista no momento da criação da obra, sua existência e exibição descontextualizada, deslocada dentro de um museu de arte contemporânea, é hoje, no mínimo, problemática. Quando a galeria de Miguel Rio Branco foi inaugurada, em 2010, o racismo estrutural no campo das artes era tão evidente que a presença de artistas e intelectuais negros em grandes mostras e instituições era sistematicamente excluída. Atualmente, com o crescimento da presença de curadores, pesquisadores e artistas negros, além de uma sociedade mais consciente das questões raciais, é imprescindível que o museu revise tanto a exposição quanto a mediação de obras como essa. Desde sua abertura, a galeria tem sido frequentada majoritariamente por um público branco — tanto nacional quanto internacional — que, mesmo que se incomodaram com o teor violento e erotizado da obra, certamente saíram dali com a desumanização de pessoas negras ainda mais reforçada. Essa desumanização, propagada historicamente pela arte ocidental, não pode mais ser tolerada. Hoje, mais do que nunca, afirmo: essa violência precisa acabar.

Para iniciar essa conversa, enviei um e-mail para o Instituto e obtive uma resposta protocolar. Nesta postagem, exibo o texto que chamei de Carta Aberta e a resposta da instituição. Apesar de uma postura de abertura e de mudanças positivas, acredito que a discussão sobre o caso deve vir a público, para que nós, enquanto sociedade, possamos refletir sobre o poder de desumanização dos museus e sobre como tratar obras como a de Rio Branco.


São Paulo, 23 de julho de 2025

Às atenções do Instituto Inhotim Sra. Paula Azevedo — Diretora-Presidente Sra. Júlia Rebouças — Diretora Artística Sra. Gleyce Heitor — Diretora de Educação e Território Sr. João Paulo Andrade — Equipe de Educação e Educação Pública

Eu, Diogo Nogueira Silva, artista, pesquisador e professor, venho, por meio desta, manifestar minha profunda inquietação com a forma como a galeria dedicada a Miguel Rio Branco tem apresentado a Série Maciel (1979) e o filme Nada levarei quando morrer aqueles que me devem cobrarei no inferno (1985). Embora reconheça o valor documental e artístico dessas obras, expresso minha preocupação com sua exibição sem mediação crítica, sem participação ou contrapartida das comunidades retratadas, especialmente da comunidade negra do Maciel/Pelourinho.

Visitei o museu em duas ocasiões. A primeira, em 2018, me causou uma impressão negativa diante da escassa presença de artistas negros, assim como da representação de pessoas negras e indígenas apenas a partir do olhar de estrangeiros como Claudia Andujar, Matthew Barney e o próprio Miguel Rio Branco. Na ocasião, escrevi dois artigos em meu site, sendo um deles intitulado “Miguel de Rio Branco: dualidade e apagamento”, no qual analiso como uma obra que poderia carregar valor de denúncia é apresentada de modo que romantiza a figura do artista ao mesmo tempo que animaliza, sexualiza e expõe de forma obscena pessoas negras, convertendo-as em objetos visuais da pobreza e das mazelas infligidas pelo Estado racista brasileiro, porém sem contexto, como se aquela situação fosse uma escolha. Sendo essas imagens um dos poucos discurso apresentado pelo museu, reduzindo corpos negros vulnerabilizados a imagens chocantes, desprovidas de agência ou contextualização:

“Enquanto suas fotografias registram, de forma acusatória e alienígena — algumas vezes bela, outras de forma crua e constante — a tristeza e o horror daqueles corpos. Os sorrisos desdentados, cicatrizes profundas, nus de mulheres despenteadas/desesperadas… testemunhas do apagamento a que esses corpos foram submetidos.” (NÓGUE, 2018, Miguel de Rio Branco: Dualidade e Apagamento).

Destaco também a comparação perturbadora entre um garoto negro e um cachorro sarnento, compreendendo o recurso da montagem e da justaposição na produção de simbolismos no trabalho de Rio Branco, mas reconhecendo que, no contexto geral da exposição, essa estratégia alimenta narrativas desumanizantes. Presenciei visitantes estrangeiros e brasileiros sorrindo e tirando selfies diante dessas imagens, sem qualquer reflexão crítica — uma experiência que descrevi como repulsiva.

Outras análises apontam que a montagem da galeria adota um caráter sensorial e gráfico sem margem para crítica interna: “não dá margens à crítica da estetização da pobreza”, com um público predominantemente das elites brancas, que vivenciam a arte sem diálogo com as comunidades retratadas (GVCult, 2016). Complementa-se ainda com a constatação do perfil historicamente elitista dos frequentadores de museus mundialmente, o que reforça a exclusão simbólica (ANAUENE & SALOMONI, 2024) algo que se reproduz na dinâmica nacional. O museu acaba, assim, operando como demonstração de poder na narrativa sobre os territórios, sobre os corpos ali representados e sobre a arte contemporânea.

Ao retornar ao museu, sete anos depois, percebi avanços, como a inclusão significativa de artistas negros — ainda que a presença indígena permaneça ausente. No entanto, a exibição da obra de Miguel Rio Branco segue inalterada e ainda causa danos à imagem das pessoas negras retratadas. A galeria foi reorganizada, a exibição do filme passou para uma TV maior, mas continua sem nenhuma contextualização ou mediação crítica — apenas uma pequena ficha técnica com um parágrafo descritivo.

O filme intercala fotografias e cenas filmadas de forma voyeurística, com uma montagem que enfatiza cicatrizes, manchas de pele, pessoas em estado alterado por substâncias, em situações de vulnerabilidade, violência, prostituição e ambientes insalubres. Combinados à trilha sonora, à montagem de som e aos enquadramentos, esses elementos criam uma leitura que animaliza e objetifica as pessoas retratadas, promovendo interpretações racistas. No escuro da sala, nas duas visitas, ouvi comentários de nojo, repulsa e racismo vindos de espectadores brancos.

Diante disso, identifico três problemáticas centrais:

  1. Ausência de contextualização histórica, social e racial;

  2. Baixa representatividade negra no processo curatorial;

  3. Risco de pornografia da pobreza e objetificação racial sem contrapartidas narrativas.

Solicito, portanto, um posicionamento institucional do Instituto Inhotim sobre os seguintes pontos:

1. Justificativas institucionais:

  • Por que manter a exposição atual sem a presença de vozes críticas ou comunitárias?

  • Como o museu justifica a ausência de mediação histórica, social e racial, especialmente para visitantes que desconhecem o contexto vivenciado pela comunidade do Maciel/Pelourinho?

  • Não proponho censura ao trabalho, mas peço que o Inhotim se posicione oficialmente sobre:Como o museu avalia a montagem da galeria diante da exposição de corpos marginalizados sem mediação crítica?Há planos concretos para inserir ações curatoriais conscientes e participativas com artistas e representantes das comunidades retratadas?Considerando os impactos observados, é possível interromper ou transformar a exibição atual, garantindo que ela seja acompanhada por narrativas negras críticas e reparadoras?

2. Planos de ação:

  • O Inhotim tem planos para desenvolver mediações curatoriais participativas, com artistas, pesquisadores negros e/ou representantes das comunidades retratadas?

  • Há interesse em incluir textos explicativos, audioguias críticos ou promover debates públicos sobre racismo institucional, memória urbana e desigualdade, elementos que o filme de Rio Branco não fornece?

3. Alternativas de exibição:

  • O ideal seria interromper a exibição do vídeo e das fotografias na configuração atual. E esse pedido não é uma censura, pois a obra promove leituras racistas o que é crime de acordo com a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989 que define os crimes os crimes de racismo o e a Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010 – Institui o Estatuto da Igualdade.

  • Caso a retirada não seja viável, proponho a reexposição crítica, incluindo obras e narrativas produzidas por artistas negros que dialoguem com as imagens de Miguel Rio Branco e contexto histórico, como acontece por exemplo na Galeria Claudia Andujar.

Reconheço ações positivas do Inhotim, como a parceria com o IPEAFRO, a aquisição de obras de artistas negros e mostras com curadoria de Deri Andrade. No entanto, a ausência de contextualização na galeria dedicada a Rio Branco contradiz os valores que a instituição diz defender. A exibição de obras descontextualizadas reforça a desumanização e o racismo estrutural contra pessoas negras, especialmente aquelas historicamente marginalizadas por políticas públicas que as matam e encarceram com anuência do Estado brasileiro.

Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública:

  • 82,7% das pessoas mortas por intervenções policiais eram negras;

  • 99,3% dessas vítimas eram homens;

  • 71,7% tinham entre 12 e 29 anos;

  • 77,8% das vítimas de mortes violentas intencionais também eram negras;

  • 69,1% das pessoas encarceradas no Brasil são negras. O estado da Bahia, onde foram feitas as fotos, é o que mais mata pessoas negras, demonstrando a continuidade do genocídio dessa população.

Reitero, assim, a necessidade de o Instituto Inhotim dialogar com coletivos do território Pelourinho-Maciel, transformando essa exposição em um espaço de justiça simbólica, protagonismo negro e reflexão crítica. É inadmissível que uma instituição, ainda que privada, tenha domínio das imagens de pessoas negras e as exiba em contexto artístico sem o posicionamento da comunidade interessada.

O visitante médio — nacional ou estrangeiro, em sua maioria branco —, sem conhecimento do contexto histórico, é confrontado com imagens gráficas sem explicação ou responsabilização histórica, o que pode reforçar estereótipos racistas. A exibição atual carece de legitimação ética, cultural e política.

Tenho consciência do peso simbólico e artístico que o Inhotim representa. Por isso mesmo, é fundamental que a instituição assuma sua responsabilidade ética e política.

Solicito, por fim, que informem qual será a postura adotada diante dessas questões, e se consideram viáveis intervenções curatoriais que tornem a exposição mais justa, ética e representativa.

Sugiro a busca de entidades, curadores e cientistas sociais para que transformem o museu em um espaço realmente inclusivo e plural. Informo ainda que esta carta será publicada nos próximos dias e enviada a mídias negras, entidades e coletivos do movimento negro, além de veículos de arte.

Atenciosamente, Diogo Nogueira Silva (Diogo Nógue)


A resposta em 30 de julho.

A diretoria do museu respondeu em pouco tempo com o seguinte conteúdo:

Prezado Diogo,

Agradecemos pelo seu e-mail, que demonstra um engajamento na construção de instituições culturais mais justas e que reflitam a diversidade e a história brasileiras de forma crítica. Gostaríamos que soubesse que esse também é um compromisso do Inhotim, refletido em nossa missão, visão e valores, que orientam as ações projetadas para o futuro da instituição.

O Inhotim, enquanto museu vivo, prevê ainda para este ano a atualização dos textos das galerias e obras ao ar livre, com o objetivo de propor uma abordagem curatorial atualizada e alinhada às discussões do nosso tempo.

Desde 2023, de forma pioneira, o Inhotim conta com uma Diretoria de Educação, responsável por articular mediações com os territórios de maneira crítica, propositiva e sensível aos debates contemporâneos.

Nos últimos anos, temos colhido frutos de um reposicionamento institucional que permitiu, entre outros avanços, a realização da recém-inaugurada exposição “Maxita Yano”, que reúne obras de 22 artistas indígenas contemporâneos e rebatiza a Galeria Claudia Andujar como Galeria Claudia Andujar | Maxita Yano. Como outro exemplo recente, destacamos a exposição de longa duração do artista guatemalteco Edgar Calel, com abertura prevista para o segundo semestre.

Convidamos você a acompanhar a nossa programação – que envolve exposições, programas públicos de arte, natureza e educação – e a reconhecer nela o nosso compromisso institucional com a construção de um museu plural, inclusivo, com um legado de conhecimento e transformação com impacto local e global.

Atenciosamente,

Diretoria

Instituto Inhotim


A resposta protocolar do e-mail esclarece que o museu pretende alterar a montagem para o próximo ano. Porém, desde 2010 até hoje, quem visita a exposição encontra o vídeo de Rio Branco sendo continuamente reproduzido — e possivelmente continuará assim mesmo após a reformulação. Resta saber se as sugestões apresentadas na carta serão consideradas ou se, ao menos, uma equipe especializada de mediação, em diálogo com a comunidade do Pelourinho, será consultada para impedir que uma instituição siga violentando a imagem de pessoas negras e reproduzindo o discurso enviesado e racista que a obra, sendo aberta a interpretações, pode alimenta. Sobre isso, a diretoria não se posicionou de forma alguma. Este post é, portanto, um convite à reflexão sobre como violências como essa são permitidas e perpetuadas.

O cenário político e a consciência sobre questões raciais mudaram ao longo dos últimos quinze anos. Ainda assim, as transformações no Inhotim só começaram a partir de 2020 e mesmo com avanços, violências como essa seguem ocorrendo diariamente, pois ela reproduz um imaginário e ideologias já consolidadas. O homem branco como mediador neutro do mundo que utiliza a arte de forma universal é uma delas, e isso é uma mentira, pois a edição do artista transforma o simples ato de comer com a mão, algo animalesco ou vai em busca de imagens de mulheres nuas e da sexualização desses corpos visual e sonoramente. Se o seu contexto de produção 1979 e de exibição 1985, conferiu ao artista adjetivos como “corajoso” e de “denuncia”, nos dias de hoje, dentro de um museu de arte contemporânea que tem um prédio erguido para exibir essa imagens, torna-se algo ofensivo, já que converte uma tragedia humana que deveria ser vergonha para qualquer sociedade, em imagens fetichizadas de pornografia da pobreza.

Estudos recentes do da JLeiva Cultura & Esporte realizada em 2025, faz um levantamento do perfil social e racial dos visitantes de equipamentos culturais. Ao que indicam os dados da pesquisa “Cultura nas Capitais”, pessoas brancas são majoritariamente quem frequentam espaços culturais considerados mais elitistas, como museus (32 %), bibliotecas (28 %) e teatros (29 %), ao passo que pessoas pretas apresentam maior presença em shows (44 %), festas populares (39 %) e espetáculos de dança (27 %) Folha de S.Paulo AlmaPreta. No caso do Museu Inhotim, conforme apresentado no estudo de Diomira Maria Cicci Pinto Faria, “Investigação sobre o visitante de museus de arte: uma comparação Brasil e Espanha” (2015), na época, os frequentadores que se declararam brancos representaram a maioria (61,5 %), seguidos pelos morenos (16,9 %), pardos (12,6 %), pretos (5,4 %), amarelos (2,2 %) e indefinidos (1,4 %). Esse perfil evidencia que, mesmo em instituições culturais de grande porte e relevância, como Inhotim, a presença de pessoas negras segue significativamente inferior à dos visitantes brancos, o que reflete padrões nacionais de desigualdade de acesso à cultura e aponta para a necessidade de estratégias institucionais que promovam inclusão e diversidade no público desses espaços.

As mostras relevantes em 2023 como Mãos: 35 anos da mão afro-brasileira, Dos Brasil (SESC), Um defeito de Cor (MUNCAB), Encruzilhadas da Arte afro-brasileira (CCBB) tem levado mais pessoas negras ao museu como demonstra a matéria “Exposição com artistas negros bate recorde de público em Petrópolis” em parte por levar temáticas e artistas negros que dialogam com o publico. Porém, espaços de difícil acesso como Inhotim e que têm também um custo alto para ser visitado, acaba inibindo a presença de pessoas negras. Para além dessas dificuldades, quando essas pessoas acessam o espaço acaba se tornando uma experiência negativa, pois as obras apresentadas fomentam um discurso elitista e supremacista que faz com que pareçamos estrangeiros em nosso próprio país.

Movido por uma ética de culto ancestral, minha indignação com a forma como as imagens daquelas pessoas são veiculadas me impede de permanecer calado. O que mais me preocupa é a ausência total de contexto sobre o vídeo. O visitante não sabe quando as imagens foram feitas, o que levou aquelas pessoas àquela situação ou que realidade histórica enfrentavam. Mais grave ainda: não há qualquer conexão com o presente. Nada indica que o Brasil continua promovendo um projeto de genocídio contra a população negra e a Bahia — local das filmagens — o estado que mais mata homens negros no país. Até hoje, no país inteiro, segue-se exterminando as populações negra e indígena, negando-lhes direitos básicos de dignidade humana.

A montagem do vídeo de Rio Branco está longe de ser neutra. Pelo contrário: cada corte, enquadramento, transição, som e silêncio escolhido reforça a animalização e a desumanização daquelas pessoas. O corpo das mulheres negras é erotizado, enquanto os corpos masculinos são apresentados como ruína. Sob a chancela da arte e da branquitude, essas imagens ganham legitimidade como “documento”, quando na verdade constituem uma ficção perversa. Uma ficção da qual os retratados não participaram, mas na qual permanecem eternamente objetificados.

As reações das pessoas diante do vídeo – rindo, fazendo piadas, expressando nojo – por si só, não são provas de que elas sejam racista ou quais reflexões causaram nelas. Porém questiono a validade daquele espaço e daquelas imagens para a reflexão sobre o que levou àquela situação ou se aquelas pessoas. Também indago se seus descendentes autorizariam o uso de suas imagens. Ou ainda, seria aceitável expor corpos brancos da mesma forma? Filmar comunidades brancas em sofrimento, vulnerabilidade, e transformá-las em objetos estéticos?

Mais que um posicionamento do Inhotim, é necessário refletir sobre como espaços de poder produzem narrativas violentas e perpetuam a desumanização de pessoas negras. Como produtor de imagens e trabalhador da arte, penso também em como nós, coletivamente, podemos combater essas violências.

Isso é ainda mais grave considerando que o museu está instalado em Brumadinho, cidade marcada pelo crime ambiental do rompimento da barragem da Vale — empresa que patrocina praticamente todas as galerias do Instituto. Nenhuma obra do acervo permanente debate essa tragédia, apesar da existência de artistas negros, como Sérgio Adriano H e Tiago Gualberto (para citar apenas dois), que produzem trabalhos sobre o tema. A ausência dessas narrativas reforça a imagem de um museu que funciona mais como vitrine de poder simbólico do que como espaço de escuta e transformação.

O que pensam os jovens funcionários negros do Inhotim sobre a galeria de Miguel Rio Branco? A comunidade de salvador, na Bahia, foi ouvida em algum momento? Por que essa obra permanece sendo exibida dessa forma em pleno 2025? Até quando a arte será usada para afirmar uma supremacia ocidental, patriarcal e branca? Tudo é permitido quando os corpos violentados são negros?

Considero extremamente obsceno que o artista lucre com a venda de reproduções, fotos e livros sobre o crime humanitário que ocorria no Brasil em 1979 — quando milhares de pessoas negras morriam vítimas de políticas genocidas — enquanto a comunidade retratada nunca recebeu qualquer contrapartida. Temática semelhante é investigada pela artista Marina Feldhues que interfere em imagens de linchamento de pessoas negras vendidas por sites de banco de imagens como “getty Images”.

Finalizo reiterando os pontos levantados na carta: o ideal seria que o vídeo nunca tivesse sido exibido no museu, pois sua presença naquele contexto reproduz violência e desumanização. O artista tem uma vasta produção e qualquer outra série de fotografias poderia ser exposta lá. Porque essa foi escolhida?

No entanto, depois de 15 anos dessa violência, se permanecerem essas imagens. a galeria de Rio Branco deve ser convertida em um espaço de educação e proposição de contra-narrativas. A permanência do registro precisa ser mediada por uma sala com materiais que concedam contexto crítico, contrapontos históricos desenvolvidos por pesquisadores negros engajados e obras de artistas negros — preferencialmente do Pelourinho — que apresentem suas próprias narrativas, humanizando aquelas pessoas e propondo nova leitura sobre o olhar enviesado do artista. Assim, as visitas futuras poderão gerar interpretações positivas e reparadoras sobre o período em que a obra foi exibida sem contexto.

Até lá, o museu continuará reproduzindo as violências que o capital e a exploração historicamente direcionaram às pessoas negras a mais de cinco séculos. Exigir essas mudanças não é censura. É compromisso ético com a história, a memória e a dignidade das pessoas que foram objetificadas e desumanizadas pela participação das artes ao longo de toda a história.

Seguimos em luta.emático dessa problemática. A sala exibe, entre outras obras, o filme “Nada levarei quando morrer, aqueles que me devem cobrarei no inferno” (1985), montado a partir de imagens feitas no bairro do Maciel/Pelourinho, em Salvador. A obra mistura registros documentais, cenas de violência explícita, prostituição, cicatrizes, corpos negros nus ou feridos, closes dramáticos e uma montagem que exibe, sem mediação, uma narrativa fragmentada e sensorial, que preza pela crueza. Trata-se de um olhar externo, branco e estrangeiro, que se apropria da dor e da vulnerabilidade de uma comunidade negra para construir uma estética da decadência.

Independentemente da posição ou das intenções do artista no momento da criação da obra, sua existência e exibição descontextualizada, deslocada dentro de um museu de arte contemporânea, é hoje, no mínimo, problemática. Quando a galeria de Miguel Rio Branco foi inaugurada, em 2010, o racismo estrutural no campo das artes era tão evidente que a presença de artistas e intelectuais negros em grandes mostras e instituições era sistematicamente excluída. Atualmente, com o crescimento da presença de curadores, pesquisadores e artistas negros, além de uma sociedade mais consciente das questões raciais, é imprescindível que o museu revise tanto a exposição quanto a mediação de obras como essa. Desde sua abertura, a galeria tem sido frequentada majoritariamente por um público branco — tanto nacional quanto internacional — que, mesmo que se incomodaram com o teor violento e erotizado da obra, certamente saíram dali com a desumanização de pessoas negras ainda mais reforçada. Essa desumanização, propagada historicamente pela arte ocidental, não pode mais ser tolerada. Hoje, mais do que nunca, afirmo: essa violência precisa acabar.

Para iniciar essa conversa, enviei um e-mail para o Instituto e obtive uma resposta protocolar. Nesta postagem, exibo o texto que chamei de Carta Aberta e a resposta da instituição. Apesar de uma postura de abertura e de mudanças positivas, acredito que a discussão sobre o caso deve vir a público, para que nós, enquanto sociedade, possamos refletir sobre o poder de desumanização dos museus e sobre como tratar obras como a de Rio Branco.


São Paulo, 23 de julho de 2025

Às atenções do Instituto Inhotim Sra. Paula Azevedo — Diretora-Presidente Sra. Júlia Rebouças — Diretora Artística Sra. Gleyce Heitor — Diretora de Educação e Território Sr. João Paulo Andrade — Equipe de Educação e Educação Pública

Eu, Diogo Nogueira Silva, artista, pesquisador e professor, venho, por meio desta, manifestar minha profunda inquietação com a forma como a galeria dedicada a Miguel Rio Branco tem apresentado a Série Maciel (1979) e o filme Nada levarei quando morrer aqueles que me devem cobrarei no inferno (1985). Embora reconheça o valor documental e artístico dessas obras, expresso minha preocupação com sua exibição sem mediação crítica, sem participação ou contrapartida das comunidades retratadas, especialmente da comunidade negra do Maciel/Pelourinho.

Visitei o museu em duas ocasiões. A primeira, em 2018, me causou uma impressão negativa diante da escassa presença de artistas negros, assim como da representação de pessoas negras e indígenas apenas a partir do olhar de estrangeiros como Claudia Andujar, Matthew Barney e o próprio Miguel Rio Branco. Na ocasião, escrevi dois artigos em meu site, sendo um deles intitulado “Miguel de Rio Branco: dualidade e apagamento”, no qual analiso como uma obra que poderia carregar valor de denúncia é apresentada de modo que romantiza a figura do artista ao mesmo tempo que animaliza, sexualiza e expõe de forma obscena pessoas negras, convertendo-as em objetos visuais da pobreza e das mazelas infligidas pelo Estado racista brasileiro, porém sem contexto, como se aquela situação fosse uma escolha. Sendo essas imagens um dos poucos discurso apresentado pelo museu, reduzindo corpos negros vulnerabilizados a imagens chocantes, desprovidas de agência ou contextualização:

“Enquanto suas fotografias registram, de forma acusatória e alienígena — algumas vezes bela, outras de forma crua e constante — a tristeza e o horror daqueles corpos. Os sorrisos desdentados, cicatrizes profundas, nus de mulheres despenteadas/desesperadas… testemunhas do apagamento a que esses corpos foram submetidos.” (NÓGUE, 2018, Miguel de Rio Branco: Dualidade e Apagamento).

Destaco também a comparação perturbadora entre um garoto negro e um cachorro sarnento, compreendendo o recurso da montagem e da justaposição na produção de simbolismos no trabalho de Rio Branco, mas reconhecendo que, no contexto geral da exposição, essa estratégia alimenta narrativas desumanizantes. Presenciei visitantes estrangeiros e brasileiros sorrindo e tirando selfies diante dessas imagens, sem qualquer reflexão crítica — uma experiência que descrevi como repulsiva.

Outras análises apontam que a montagem da galeria adota um caráter sensorial e gráfico sem margem para crítica interna: “não dá margens à crítica da estetização da pobreza”, com um público predominantemente das elites brancas, que vivenciam a arte sem diálogo com as comunidades retratadas (GVCult, 2016). Complementa-se ainda com a constatação do perfil historicamente elitista dos frequentadores de museus mundialmente, o que reforça a exclusão simbólica (ANAUENE & SALOMONI, 2024) algo que se reproduz na dinâmica nacional. O museu acaba, assim, operando como demonstração de poder na narrativa sobre os territórios, sobre os corpos ali representados e sobre a arte contemporânea.

Ao retornar ao museu, sete anos depois, percebi avanços, como a inclusão significativa de artistas negros — ainda que a presença indígena permaneça ausente. No entanto, a exibição da obra de Miguel Rio Branco segue inalterada e ainda causa danos à imagem das pessoas negras retratadas. A galeria foi reorganizada, a exibição do filme passou para uma TV maior, mas continua sem nenhuma contextualização ou mediação crítica — apenas uma pequena ficha técnica com um parágrafo descritivo.

O filme intercala fotografias e cenas filmadas de forma voyeurística, com uma montagem que enfatiza cicatrizes, manchas de pele, pessoas em estado alterado por substâncias, em situações de vulnerabilidade, violência, prostituição e ambientes insalubres. Combinados à trilha sonora, à montagem de som e aos enquadramentos, esses elementos criam uma leitura que animaliza e objetifica as pessoas retratadas, promovendo interpretações racistas. No escuro da sala, nas duas visitas, ouvi comentários de nojo, repulsa e racismo vindos de espectadores brancos.

Diante disso, identifico três problemáticas centrais:

  1. Ausência de contextualização histórica, social e racial;

  2. Baixa representatividade negra no processo curatorial;

  3. Risco de pornografia da pobreza e objetificação racial sem contrapartidas narrativas.

Solicito, portanto, um posicionamento institucional do Instituto Inhotim sobre os seguintes pontos:

1. Justificativas institucionais:

  • Por que manter a exposição atual sem a presença de vozes críticas ou comunitárias?

  • Como o museu justifica a ausência de mediação histórica, social e racial, especialmente para visitantes que desconhecem o contexto vivenciado pela comunidade do Maciel/Pelourinho?

  • Não proponho censura ao trabalho, mas peço que o Inhotim se posicione oficialmente sobre: Como o museu avalia a montagem da galeria diante da exposição de corpos marginalizados sem mediação crítica? Há planos concretos para inserir ações curatoriais conscientes e participativas com artistas e representantes das comunidades retratadas? Considerando os impactos observados, é possível interromper ou transformar a exibição atual, garantindo que ela seja acompanhada por narrativas negras críticas e reparadoras?

2. Planos de ação:

  • O Inhotim tem planos para desenvolver mediações curatoriais participativas, com artistas, pesquisadores negros e/ou representantes das comunidades retratadas?

  • Há interesse em incluir textos explicativos, audioguias críticos ou promover debates públicos sobre racismo institucional, memória urbana e desigualdade, elementos que o filme de Rio Branco não fornece?

3. Alternativas de exibição:

  • O ideal seria interromper a exibição do vídeo e das fotografias na configuração atual. E esse pedido não é uma censura, pois a obra promove leituras racistas o que é crime de acordo com a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989 que define os crimes os crimes de racismo o e a Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010 – Institui o Estatuto da Igualdade.

  • Caso a retirada não seja viável, proponho a reexposição crítica, incluindo obras e narrativas produzidas por artistas negros que dialoguem com as imagens de Miguel Rio Branco e contexto histórico, como acontece por exemplo na Galeria Claudia Andujar.

Reconheço ações positivas do Inhotim, como a parceria com o IPEAFRO, a aquisição de obras de artistas negros e mostras com curadoria de Deri Andrade. No entanto, a ausência de contextualização na galeria dedicada a Rio Branco contradiz os valores que a instituição diz defender. A exibição de obras descontextualizadas reforça a desumanização e o racismo estrutural contra pessoas negras, especialmente aquelas historicamente marginalizadas por políticas públicas que as matam e encarceram com anuência do Estado brasileiro.

Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública:

  • 82,7% das pessoas mortas por intervenções policiais eram negras;

  • 99,3% dessas vítimas eram homens;

  • 71,7% tinham entre 12 e 29 anos;

  • 77,8% das vítimas de mortes violentas intencionais também eram negras;

  • 69,1% das pessoas encarceradas no Brasil são negras. O estado da Bahia, onde foram feitas as fotos, é o que mais mata pessoas negras, demonstrando a continuidade do genocídio dessa população.

Reitero, assim, a necessidade de o Instituto Inhotim dialogar com coletivos do território Pelourinho-Maciel, transformando essa exposição em um espaço de justiça simbólica, protagonismo negro e reflexão crítica. É inadmissível que uma instituição, ainda que privada, tenha domínio das imagens de pessoas negras e as exiba em contexto artístico sem o posicionamento da comunidade interessada.

O visitante médio — nacional ou estrangeiro, em sua maioria branco —, sem conhecimento do contexto histórico, é confrontado com imagens gráficas sem explicação ou responsabilização histórica, o que pode reforçar estereótipos racistas. A exibição atual carece de legitimação ética, cultural e política.

Tenho consciência do peso simbólico e artístico que o Inhotim representa. Por isso mesmo, é fundamental que a instituição assuma sua responsabilidade ética e política.

Solicito, por fim, que informem qual será a postura adotada diante dessas questões, e se consideram viáveis intervenções curatoriais que tornem a exposição mais justa, ética e representativa.

Sugiro a busca de entidades, curadores e cientistas sociais para que transformem o museu em um espaço realmente inclusivo e plural. Informo ainda que esta carta será publicada nos próximos dias e enviada a mídias negras, entidades e coletivos do movimento negro, além de veículos de arte.

Atenciosamente, Diogo Nogueira Silva (Diogo Nógue)


A resposta em 30 de julho.

A diretoria do museu respondeu em pouco tempo com o seguinte conteúdo:

Prezado Diogo,

Agradecemos pelo seu e-mail, que demonstra um engajamento na construção de instituições culturais mais justas e que reflitam a diversidade e a história brasileiras de forma crítica. Gostaríamos que soubesse que esse também é um compromisso do Inhotim, refletido em nossa missão, visão e valores, que orientam as ações projetadas para o futuro da instituição.

O Inhotim, enquanto museu vivo, prevê ainda para este ano a atualização dos textos das galerias e obras ao ar livre, com o objetivo de propor uma abordagem curatorial atualizada e alinhada às discussões do nosso tempo.

Desde 2023, de forma pioneira, o Inhotim conta com uma Diretoria de Educação, responsável por articular mediações com os territórios de maneira crítica, propositiva e sensível aos debates contemporâneos.

Nos últimos anos, temos colhido frutos de um reposicionamento institucional que permitiu, entre outros avanços, a realização da recém-inaugurada exposição “Maxita Yano”, que reúne obras de 22 artistas indígenas contemporâneos e rebatiza a Galeria Claudia Andujar como Galeria Claudia Andujar | Maxita Yano. Como outro exemplo recente, destacamos a exposição de longa duração do artista guatemalteco Edgar Calel, com abertura prevista para o segundo semestre.

Convidamos você a acompanhar a nossa programação – que envolve exposições, programas públicos de arte, natureza e educação – e a reconhecer nela o nosso compromisso institucional com a construção de um museu plural, inclusivo, com um legado de conhecimento e transformação com impacto local e global.

Atenciosamente,

Diretoria

Instituto Inhotim


A resposta protocolar do e-mail esclarece que o museu pretende alterar a montagem para o próximo ano. Porém, desde 2010 até hoje, quem visita a exposição encontra o vídeo de Rio Branco sendo continuamente reproduzido — e possivelmente continuará assim mesmo após a reformulação. Resta saber se as sugestões apresentadas na carta serão consideradas ou se, ao menos, uma equipe especializada de mediação, em diálogo com a comunidade do Pelourinho, será consultada para impedir que uma instituição siga violentando a imagem de pessoas negras e reproduzindo o discurso enviesado e racista que a obra, sendo aberta a interpretações, pode alimenta. Sobre isso, a diretoria não se posicionou de forma alguma. Este post é, portanto, um convite à reflexão sobre como violências como essa são permitidas e perpetuadas.

O cenário político e a consciência sobre questões raciais mudaram ao longo dos últimos quinze anos. Ainda assim, as transformações no Inhotim só começaram a partir de 2020 e mesmo com avanços, violências como essa seguem ocorrendo diariamente, pois ela reproduz um imaginário e ideologias já consolidadas. O homem branco como mediador neutro do mundo que utiliza a arte de forma universal é uma delas, e isso é uma mentira, pois a edição do artista transforma o simples ato de comer com a mão, algo animalesco ou vai em busca de imagens de mulheres nuas e da sexualização desses corpos visual e sonoramente. Se o seu contexto de produção 1979 e de exibição 1985, conferiu ao artista adjetivos como “corajoso” e de “denuncia”, nos dias de hoje, dentro de um museu de arte contemporânea que tem um prédio erguido para exibir essa imagens, torna-se algo ofensivo, já que converte uma tragedia humana que deveria ser vergonha para qualquer sociedade, em imagens fetichizadas de pornografia da pobreza.

Estudos recentes do da JLeiva Cultura & Esporte realizada em 2025, faz um levantamento do perfil social e racial dos visitantes de equipamentos culturais. Ao que indicam os dados da pesquisa “Cultura nas Capitais”, pessoas brancas são majoritariamente quem frequentam espaços culturais considerados mais elitistas, como museus (32 %), bibliotecas (28 %) e teatros (29 %), ao passo que pessoas pretas apresentam maior presença em shows (44 %), festas populares (39 %) e espetáculos de dança (27 %) Folha de S.Paulo AlmaPreta. No caso do Museu Inhotim, conforme apresentado no estudo de Diomira Maria Cicci Pinto Faria, “Investigação sobre o visitante de museus de arte: uma comparação Brasil e Espanha” (2015), na época, os frequentadores que se declararam brancos representaram a maioria (61,5 %), seguidos pelos morenos (16,9 %), pardos (12,6 %), pretos (5,4 %), amarelos (2,2 %) e indefinidos (1,4 %). Esse perfil evidencia que, mesmo em instituições culturais de grande porte e relevância, como Inhotim, a presença de pessoas negras segue significativamente inferior à dos visitantes brancos, o que reflete padrões nacionais de desigualdade de acesso à cultura e aponta para a necessidade de estratégias institucionais que promovam inclusão e diversidade no público desses espaços.

As mostras relevantes em 2023 como Mãos: 35 anos da mão afro-brasileira, Dos Brasil (SESC), Um defeito de Cor (MUNCAB), Encruzilhadas da Arte afro-brasileira (CCBB) tem levado mais pessoas negras ao museu como demonstra a matéria “Exposição com artistas negros bate recorde de público em Petrópolis” em parte por levar temáticas e artistas negros que dialogam com o publico. Porém, espaços de difícil acesso como Inhotim e que têm também um custo alto para ser visitado, acaba inibindo a presença de pessoas negras. Para além dessas dificuldades, quando essas pessoas acessam o espaço acaba se tornando uma experiência negativa, pois as obras apresentadas fomentam um discurso elitista e supremacista que faz com que pareçamos estrangeiros em nosso próprio país.

Movido por uma ética de culto ancestral, minha indignação com a forma como as imagens daquelas pessoas são veiculadas me impede de permanecer calado. O que mais me preocupa é a ausência total de contexto sobre o vídeo. O visitante não sabe quando as imagens foram feitas, o que levou aquelas pessoas àquela situação ou que realidade histórica enfrentavam. Mais grave ainda: não há qualquer conexão com o presente. Nada indica que o Brasil continua promovendo um projeto de genocídio contra a população negra e a Bahia — local das filmagens — o estado que mais mata homens negros no país. Até hoje, no país inteiro, segue-se exterminando as populações negra e indígena, negando-lhes direitos básicos de dignidade humana.

A montagem do vídeo de Rio Branco está longe de ser neutra. Pelo contrário: cada corte, enquadramento, transição, som e silêncio escolhido reforça a animalização e a desumanização daquelas pessoas. O corpo das mulheres negras é erotizado, enquanto os corpos masculinos são apresentados como ruína. Sob a chancela da arte e da branquitude, essas imagens ganham legitimidade como “documento”, quando na verdade constituem uma ficção perversa. Uma ficção da qual os retratados não participaram, mas na qual permanecem eternamente objetificados.

As reações das pessoas diante do vídeo – rindo, fazendo piadas, expressando nojo – por si só, não são provas de que elas sejam racista ou quais reflexões causaram nelas. Porém questiono a validade daquele espaço e daquelas imagens para a reflexão sobre o que levou àquela situação ou se aquelas pessoas. Também indago se seus descendentes autorizariam o uso de suas imagens. Ou ainda, seria aceitável expor corpos brancos da mesma forma? Filmar comunidades brancas em sofrimento, vulnerabilidade, e transformá-las em objetos estéticos?

Mais que um posicionamento do Inhotim, é necessário refletir sobre como espaços de poder produzem narrativas violentas e perpetuam a desumanização de pessoas negras. Como produtor de imagens e trabalhador da arte, penso também em como nós, coletivamente, podemos combater essas violências.

Isso é ainda mais grave considerando que o museu está instalado em Brumadinho, cidade marcada pelo crime ambiental do rompimento da barragem da Vale — empresa que patrocina praticamente todas as galerias do Instituto. Nenhuma obra do acervo permanente debate essa tragédia, apesar da existência de artistas negros, como Sérgio Adriano H e Tiago Gualberto (para citar apenas dois), que produzem trabalhos sobre o tema. A ausência dessas narrativas reforça a imagem de um museu que funciona mais como vitrine de poder simbólico do que como espaço de escuta e transformação.

O que pensam os jovens funcionários negros do Inhotim sobre a galeria de Miguel Rio Branco? A comunidade de salvador, na Bahia, foi ouvida em algum momento? Por que essa obra permanece sendo exibida dessa forma em pleno 2025? Até quando a arte será usada para afirmar uma supremacia ocidental, patriarcal e branca? Tudo é permitido quando os corpos violentados são negros?

Considero extremamente obsceno que o artista lucre com a venda de reproduções, fotos e livros sobre o crime humanitário que ocorria no Brasil em 1979 — quando milhares de pessoas negras morriam vítimas de políticas genocidas — enquanto a comunidade retratada nunca recebeu qualquer contrapartida. Temática semelhante é investigada pela artista Marina Feldhues que interfere em imagens de linchamento de pessoas negras vendidas por sites de banco de imagens como “getty Images”.

Finalizo reiterando os pontos levantados na carta: o ideal seria que o vídeo nunca tivesse sido exibido no museu, pois sua presença naquele contexto reproduz violência e desumanização. O artista tem uma vasta produção e qualquer outra série de fotografias poderia ser exposta lá. Porque essa foi escolhida?

No entanto, depois de 15 anos dessa violência, se permanecerem essas imagens. a galeria de Rio Branco deve ser convertida em um espaço de educação e proposição de contra-narrativas. A permanência do registro precisa ser mediada por uma sala com materiais que concedam contexto crítico, contrapontos históricos desenvolvidos por pesquisadores negros engajados e obras de artistas negros — preferencialmente do Pelourinho — que apresentem suas próprias narrativas, humanizando aquelas pessoas e propondo nova leitura sobre o olhar enviesado do artista. Assim, as visitas futuras poderão gerar interpretações positivas e reparadoras sobre o período em que a obra foi exibida sem contexto.

Até lá, o museu continuará reproduzindo as violências que o capital e a exploração historicamente direcionaram às pessoas negras a mais de cinco séculos. Exigir essas mudanças não é censura. É compromisso ético com a história, a memória e a dignidade das pessoas que foram objetificadas e desumanizadas pela participação das artes ao longo de toda a história.

Seguimos em luta.

— Diogo Nogueira Silva (Diogo Nógue)

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