Luto pela educação – verbo ou substantivo?

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Imagine uma pilha com instrumentos, livros, reproduções obras de arte, caixa com jogos tudo isso… sendo jogado no lixo!

Essa imagem não sai da minha cabeça…

Diogo Nógue

Como devem saber, além de artista e escritor, também sou professor de artes no ensino fundamental. Não é um trabalho fácil, apesar de melhor que trabalhar como designer, o território da educação é um ambiente de constante luta. Porém, no começo deste ano essa batalha se transformou em um luto – substantivo – que está me levando algum tempo para superar.

Todas as esferas educacionais tem problemas estruturais e de projeto. Parece que tudo é feito para não funcionar. É uma mentira que todos concordam em fingir que funciona. A federação cobra do estado, que cobra do município, que cobra do professor. O município finge que deu as ferramentas para o professor e pede resultados. O professor sobrecarregado, finge que cumpriu o que o município e o estado pedem. As secretarias da educação, passam demandas para a de assistência social e saúde, que fingem que fazem seu trabalho também. No final, é um grande jogo de empurra em que educadores e educandos estão sozinhos em uma gincana para colar cacos de vidro no cuspe.

Na cidade em que trabalho, por exemplo, existiram boas tentativas de uma educação cidadã, democrática e que valoriza a cultura, porém essas tentativas são náufragos que nadam para morrer na praia. Uma troca de governo, conchavos de poderosos locais, podem desfazer facilmente passos que foram dados. No fim, são apenas castelos de areia.

O fato de ser um município relativamente pequeno também gera outro problema: algumas instâncias de poder, por se conhecerem, acham que são donas do bem publico. Certas pessoas por estarem no mesmo cargo por anos, se consideram reis de determinadas jurisdições. E com um pensamento escravocrata, opressor e de cria de colonizador, vai minando movimentos sociais, iniciativas de confronto contra paradigmas e etc.

Foi com a surpresa desta constatação que fui recebido na minha volta das férias este ano. O fato que ocorreu me deixou deprimido por semanas, com uma angustia no peito, vontade de desistir. Também me trouxe reflexões sobre o poder, a cultura da obediência, e a opressão das hierarquias que dominam a estrutura social de nosso pais.

A morte

Nestes três anos de pós pandemia, o luto esteve presente de várias formas em nosso ambiente escolar. Colegas de profissão morreram do vírus, ou do estresse causado pelas cobranças e demandas que secretaria, diretores, coordenadores e pais depositaram sobre nós. As crianças perderam parentes próximos e as vezes amigos. Sem auxilio psicológico algum, esses traumas tinham que ser colocados de lado para seguir em frente na missão da educação.

Uma das grandes tristezas era saber que o trabalho que estava sendo feito não estava chegando as crianças. Aprendemos a gravar e editar vídeos, usar plataformas diversas, as vezes até linguagem de programação. Enviando atividades por e-mail, whatsapp, facebook, impressas. E sabendo que em muitos casos, as crianças estavam com necessidades básicas de alimentação e não tinham internet, aparelhos eletrônicos, ou o auxilio dos pais para executar as atividades. Os que tinham, muitas vezes, os pais faziam as atividades no lugar dos filhos. Ou seja, não foi inútil, no entanto, pouco efetivo.

Na volta do presencial, novos desafios e defasagens tornaram nosso trabalho ainda mais desafiador. O que me mantinha de pé era a estrutura e estratégias que construir ao longo da minha carreira de professor e também um acerto do diretor da minha unidade escolar que se empenhou para criar salas temáticas destinada as linguagens de artes visuais.

Nesse espaço, a sala de arte, reunia recursos didáticos que foram herança de diferentes gestões de prefeituras passadas. Sobras de instrumentos como bandas rítmicas, violões, cavaquinhos; reproduções de obras de arte do MASP e Pinacoteca de sp em impressões de qualidade e plástico que durariam décadas. Mas também, recursos que fui juntando com o tempo ou que foram passados do acervo de minha mãe (também professora) para mim. Então, desde meus estudos de teoria de cores que fiz no ensino técnico ou na faculdade; Maletas com materiais de Bienais obtidos por formações; Outros materiais de apoio obtidos em garimpos em bienais do livro ou sebos. Tudo isso, estavam nessa sala em armários que organizei com esmero antes de sair de férias em 2022.

Más noticias

O diretor da nossa escola tinha sido afastado do cargo aquele ano. Isso gerou uma instabilidade na escola e a SME (Secretaria Municipal de Educação) deixou uma direção suplente, que não ficava direto na unidade. A nova gestão não estava muito preocupada com isso. Infelizmente falta uma construção de memória na educação, e troca de gestões municipais ou de diretores acaba também quebrando iniciativas de construção dessa história.

Mesmo sabendo disso, nada me preparou para as más noticias da volta ao ano letivo de 2023.

Como disse, tinha deixado a sala organizada ao fim do ano. e como eu voltaria para lá, deixei também alguns dos meus materiais pessoais que reuni ao longo dos meus anos como professor. E até outros itens que foram da minha mãe, ou presentes de pais de alunos. Tinham meus desenhos que fiz no curso técnico e também na faculdade (tabelas de cores, retratos, exercícios de composição); Duas caixas do educativo da Bienal de São Paulo ( uma da 29ª e outra da 31ª); Chocalhos indígenas e paus de chuva); Uma caixa com livros de artistas brasileiros e mais de 200 reproduções de pinturas em papel cartão e couchê; Caixas de jogos, um em especial era um jogo com a história de pessoas negras importantes da história do brasil.

Além de instrumentos novos, outros mais velhos, alguns avariados, porém todos que davam para ser usados. E eu usava-os muito em aulas de dança, músicas populares, e até em teatros de objetos e etc.

Na reunião de planejamento, uma colega de trabalho vem com tristeza me contar o que aconteceu quando não tinha mais ninguém na escola. A diretora mandou jogar fora tudo, tudo, que estava no atelier de arte. Instrumentos musicais (violões, cavaquinhos, tambores, agogôs, pratos, triângulos, chocalhos), reproduções de obras de arte grandes e em ótima qualidade impressos em plástico, cadernos de desenhos dos alunos e trabalhos que eles fizeram, blocos de papeis A2, A3 e etc (que estão em falta até hoje na escola), réguas, pranchetas, aventais, tubos de cola, tesoura, mais de 300 lápis de cor, giz de cera, tintas. Fora os livros caros de teoria de arte educação, musicalização, história e etc. Tudo jogado no lixo.

Em um primeiro momento não acreditei, um profissional da educação não fazia um crime desse contra a cultura, a arte e a educação em si. Sabemos que itens como esse não são repostos com facilidade na educação publica. Todos esses recursos foram sobras de anos e anos de gestões anteriores com ações pontuais. E assim, sem consulta dos professores da escola, coordenação, sem aviso algum, a nova gestão jogou tudo no lixo.

Correndo, fui à sala de arte e estava tudo vazio. Nada dos instrumentos, materiais, livros, meus pertences, nada. Preocupado, fui a procura da diretora, que tinha dado a ordem de limpar a sala. Minha esperança era que ela tivesse guardado em algum lugar os materiais.

Porém fui respondido com olhar de raiva e total falta de respeito:

“Aquela sala estava um lixo, joguei tudo fora, esta tudo um nojo, como vocês levavam as crianças para aquele lugar?”

A reação dela foi totalmente desproporcional e uma tremenda falta de respeito. Além de ser uma mentira. A sala estava limpa e organizada quando saímos de recesso. E se estivesse suja seria por problemas estruturais da escola que quando chove tem goteiras e infiltração de agua pelas janelas e claraboias…

Mesmo que tivesse uma bagunça, o que não estava, nada justificaria jogar fora instrumentos, livros, materiais e reproduções de obras de arte. Não eram itens descartáveis. E não havia nenhum motivo para jogar fora itens meus e de outros professores de arte que estavam nos armários, guardados e arrumados. A não ser que tenha sido um ato de ódio. O que não posso afirmar.

Além disso, eu e uma colega envolvida com as causas indígenas utilizamos uma placa em homenagem a Sônia Guajajara, que foi colocada na porta da sala de aula para fomentar a discussão e o conhecimento sobre os povos indígenas e quebrar estereótipos sobre o tema. A maioria dos alunos aprendeu sobre as etnias e lutas indígenas pela primeira vez através dessa placa. No entanto, assim como todos os itens da sala, alguém arrancou e jogou fora a placa. Podemos argumentar que, como Sônia se tornou ministra do novo governo, a retirada da placa seria o ideal para evitar conflitos. No entanto, o ato de remoção de todos os itens mencionados acima, juntamente com a retirada da placa, pode ser interpretado como um ataque político de ódio, intencionalmente ou não. Alguém atacou nosso território e, devido à fala sem respeito e violenta que recebi quando questionei de maneira cordial sobre itens pessoais e, principalmente, itens do bem público.

Educação da obediência cega

Uma das reflexões que esse acontecimento me levantou foi sobre o ditado popular “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Vivemos em uma sociedade escravocrata, colonial e racista. Essa cultura da obediência aos que tem o poder foi criada em nossa história a partir de tortura, assassinato, estupro e outras violências psicológicas. Está totalmente cravada em nosso subconsciente e reafirmada todo dia em injustiças e assédios que trabalhadores sofrem.

Assim, na busca por saber o que aconteceu com os materiais, os funcionários da escola relatavam tristes que tiveram que jogar fora as coisas da escola, alguns até pediram para Diretora doar alguns dos itens, instrumentos por exemplo. Porém, como pessoas mais simples, diante de uma ordem superior, mesmo discordando, fizeram o trabalho.

Esta é uma discussão profunda e existem muitas pesquisas sobre a obediência cega. Principalmente em relação a seguir ordens de pessoas com poder de autoridade. Essa cultura da obediência está tão presa dentro de nós, que diante de uma figura de autoridade, ou uma ordem direta, poucas pessoas vão questiona-la. O sentimento de impotência, inferioridade, é uma barreira que precisa ser vencida para contestar uma ordem, principalmente uma injusta. Existe também um outro ponto, estudado principalmente em relação a ordens injustas ou que atingem a ética: as pessoas tendem a executa-la, pois passam a responsabilidade do ato para o mandante da ordem.

Vejo isso todo dia com as crianças em sala. Muitas que brigam, xingam o colega, ou fazem algo errado costumam recorrer a frase “mas foi o fulano que mandou”. Para eles, a culpa do seu ato errado não conta, pois foi o outro que mandou. E ai tenho que explicar que não é assim. Cada um é responsável pelos próprios atos.

Por incrível que pareça, essa mentalidade, também existe entre adultos. Mesmo que de forma inconsciente. Não atoa ficamos sabendo de tantas atrocidades na escravidão, ditadura, invasões em favelas e comunidades. Junta ai dois fatores, o poder da autoridade e a ordem direta, que liberta essas pessoas para cometer as maiores atrocidades.

O quanto dessa educação da obediência cega estamos ensinando para nossos filhos, sobrinhos, alunos e etc? É preciso tirar de nossa cultura essa falta de questionamento, e também a falta de rebelião diante de injustiças.

E não é fácil fazer isso, principalmente, em um caso como esse na escola. Provavelmente as funcionárias da limpeza não sabiam do valor material e imaterial dos jogos, reproduções, livros, porém certamente dos instrumentos, que tentaram salvar. E como um sinal desse pesar ético, pediram para doar os violões.

O luto

É difícil de entender, porém fiquei em luto por coisas, objetos, livros. Sim, durante semanas fiquei com uma dor no peito, tristeza e sentimento de vazio. Principalmente durante os planejamentos de aulas. Pois ai, eu relembrava os materiais que perdi, as atividades que não poderia fazer. Os itens que precisava repor para uma aula minimamente decente.

A sensação era de luto não pelos objetos em si, mas pelo que representavam enquanto projeto, construção de carreira. Coisas que vamos adquirindo para criar aulas mais divertidas e ricas, e que facilmente são descartadas. Fez-me pensar sobre a educação no geral, um projeto de desmonte e descaso. Cada dia mais desvalorizado, cada vez mais um trabalho precário.

Não teve como não lembrar de meu professor de fotografia do ensino técnico. O professor Silvio, a anos dando aula na escola, Montou com ajuda dos alunos, mas principalmente empenho próprio um laboratório de fotografia, para revelação de negativos e ampliação. Porém em uma reforma no prédio, desmontaram e jogaram fora seu laboratório. Me vi como ele, senti a dor que ele sentiu. E mesmo assim, tentava dar a melhor aula possível para nós. Sem recursos, mas com a vontade de proporcionar e despertar potenciais nos educandos.

Foi inspirado nele que decidi aceitar as perdas e buscar fazer o meu melhor com o que eu tinha. Aceitar que apesar da violência, da injustiça, eu faria meu trabalho da melhor forma possível, e do jeito que eu acredito.

A luta

Como forma de mostrar minha indignação sobre o crime ao patrimônio publico e aos alunos da minha comunidade escolar. Entrei em contato com a SME para informar sobre os itens descartados e o prejuízo pessoal e público causado pela ação da diretora. No entanto, o processo demora e até o momento a SME fez pouco para resolver a situação. Ainda aguardo alguma resposta da instituição em si diante da lesa ao patrimônio publico. A diretora recuperou quatro instrumentos que foram doados, mas alguns deles vieram avariados.

Será que o que eu disse lá no primeiro paragrafo vai se confirmar? A troca de favores, a passada de pano de amigos do poder e etc? provavelmente.

Como forma de lutar contra a dor do luto e da impotência, investi do meu bolso novamente, em materiais para minhas aulas, e também utilizando aulas mais praticas e que não precisam tanto de materiais, estou levando e desenvolvendo atividades para esse inicio de ano. Em busca de uma educação antirracista e valorizando a cultura afro e indígena com as crianças.

Porém, essa luta é muito cansativa, se você coloca suas ações em perspectiva geral. A cada dia as noticias são mais desanimadoras, a cada dia, as problemáticas sociais e o projeto de um Brasil excludente se acentua. São tantas frentes! Iniciando principalmente pelos problemas do capitalismo, passando por questões do fundamentalismo evangélico, politicas liberais, fanatismo, doutrinas e a ideologia de extrema direita. O machismo, racismo e lgbtqa+ fobia. Tudo isso, são questões pesadas e estruturais muito grandes, que diante de uma sala de trinta crianças é impossível de contornar. Parecer uma voz solitária em mundo de problemas é muito pesado e doloroso.

Por isso, três dicas que dou aos que estão iniciando nesse caminho é ver a luta em duas frentes.

A primeira é pensar no mínimo. não sabemos o quanto nossas ações podem ser positivas ou negativa na vida das outras pessoas, e as vezes uma frase, um exemplo, uma aula que a gente proporciona uma experiência significativa, pode ser uma memória que vai mudar a vida de um aluno. Então, no dia-a-dia, tente ser uma força positiva para ao menos um aluno, busque nesse pequeno ato a recompensa para sua missão. Sempre tendo em mente que não podemos dimensionar nossa influência, negativa ou positiva.

A segunda é tentar lutar contra paradigmas e os problemas estruturais da educação, mas sabendo que a luta não é para a nossa geração, que é para um futuro, que estamos plantando sementes, que podem ou não dar frutos. Assim, não se frustre diante dos problemas estruturais diários, pois vivemos em um mundo injusto e longe do ideal.

A terceira: É preciso saber quando mudar a forma de luta. As vezes precisamos usar a experiência adquirida e reavaliar a ação em uma determinada área. E outras é preciso ver quando um lugar já não é produtivo para nós. Se uma situação esta nos adoecendo, as vezes é preciso sair. E isso não é desistir de uma luta, é buscar outras batalhas.

Este ano, decidi seguir as três.

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