Conto: Olhos que acusam, mãos que tentam me prender

olhos que acusam

Olá amigos, o conto a seguir foi escrito após ver o filme “Corra!” de Jordan Peele em 2017 e também inspirado em acontecimentos e conversas sobre ser um homem preto e o racismo a nossa volta.

Foi um exercicio de escrita livre, em que eu e minha amiga Kátia começamos sem uma ideia pré definida e um continuava a partir de onde o outro parou. Não sabíamos o tema do conto até ele nos dizer, e foi bastante pesado chegar ao seu final. Espero que apreciem a leitura!

Era grande, sempre fui, olhos grandes, negro, um bebezarrão. Eu era a dúvida e a beleza da minha mãe, na verdade era tudo o que não poderia ser, um homem. Talvez pela força presente nesta palavra, percebi, desde de pequeno que havia uma lista comportamental que eu deveria seguir: Ser forte e viril eram os primeiros ítens desta lista e guiavam todos os restantes. Não havia choro, não poderia haver choro, não de mim, nem quando me sentia com medo, nem quando pegavam os meus brinquedos, nem quando minha mãe demorava a me buscar, em momento algum poderia haver choro, uma cara de aflição era aceita, choro jamais.

Com o tempo a minha cara de aflição passou a ser confundida, com ira, e a ira virou o medo do outro, o outro era branco. O engraçado é que eu achava que boa parte dos problemas da minha mãe eram causados por pessoas brancas, elas causavam medo na minha mãe, por consequência me causavam medo e o meu medo causava medo à elas.

Minha mãe tinha problemas com a sua patroa branca que não entendia o seu atraso no trabalho, tinha problemas com as suas colegas brancas, que não entendiam que ela não era branca, tinha problemas com o cara branco que dava em cima ela, que não entedia como ela não tinha um homem, ou não queria um homem branco e tinha o maior problema de todos… me ensinar a ser um homem preto, no meio de tantos problemas brancos.

Os brancos tinham os seus problemas, como terem mais dinheiro, como se manterem no comando, acho que isso resumia como eu os enxergava, desde a adolescência.
Eu deveria ser inteligente, nunca mais do que um branco, deveria ser forte, nunca de uma forma que um branco considerasse ameaçadora e deveria ser bonito o suficiente para esporadicamente comer uma mulher branca.

Eu tinha que sobreviver…  Seguindo as exigências sociais e maternais e esporadicamente ser eu, esporadicamente. Quando isto acontecia, ah quando isto acontecia… eu era o Léo da minha mãe, o rei da minha avó, o preto da minha pretinha. Eu sorria de verdade, tem ideia do que é sorrir de verdade? Isso era raro, eu sorria por conveniência e quase para poder manter o meu silêncio e invisibilidade diante de tanta loucura.

Ser invisível era a melhor solução para a maioria dos casos, não ser visto e evitar conflitos era a certeza de sobreviver a mais um dia. Uma tentativa de ter alguma paz ou liberdade, mesmo que só dentro de mim, por alguns segundos. 

Porém nem sempre isso era possível, e foi esse pensamento que me acordou do choque enquanto aqueles olhares me acusavam. Fui percebido, não como eu, mas como a ameaça que aprendi a não ser. 

Aquela era uma tarde comum, começava a escurecer e o vento gelava minhas orelhas, eu estava de moletom, mas evitava colocar a touca, pois não queria que me achassem suspeito. Andava rápido, para fugir do frio e chegar mais rápido em casa. Olhei no celular, o relógio marcava 18h20 e a bateria estava prestes a acabar, apressei o passo. Na multidão, esbarrei em alguém, e segui sem olhar para trás, ignorando a paisagem viva de pessoas. 

12º marcava o termômetro da rua as 18h22 sinto uma mão segurar meu ombro de maneira brusca e ignorante. Me viro alerta…

“Foi ele, seu policial” apontava pra mim uma mulher. 

“Certeza? ” Perguntou segurando mais forte meu braço, enquanto era cercado por mais dois PMs com a alma em mãos. 

Contestei, perguntando o que tinha feito, eles falaram pra eu ficar quieto. 

“Tem passagem? ” Passagem? Que passagem – pensei… de ônibus, metrô? 

“Não” respondi. Pediram meu RG e perguntaram meu nome e o da minha mãe. Me encostaram na parede de uma loja. A multidão em volta se abriu. Alguns curiosos paravam a distância observando, ou do outro lado da rua. A mulher que me acusou de algo, conversava aos berros com outro policial enquanto os dois olhavam em minha direção. Pediram pra abrir minha mochila e me revistaram. 

Meu coração pulava quase em minha garganta, minha boca estava seca e eu gaguejava nas respostas, me sentia envergonhado e o medo tomou conta de mim, mesmo sem saber o porquê tudo aquilo estava acontecendo. 

“De quem é esse celular?” É meu, eu respondi. 

“Mentira dele, esse é o meu celular, ele fingiu que esbarrou em mim eu senti alguém mexendo na minha bolsa, e quando fui procurar meu celular eu não achei. Eu sempre deixo ele nessa parte de fora, e ela tava aberta, aí vi que ele guardou um celular no bolso e começou a fugir”

“Porque você estava correndo? ” – Não estava correndo… estava frio e queria chegar logo em casa, só isso…

Eles continuavam a revistar minha bolsa, um outro falava no rádio conferindo meus dados, e a mulher olhava pra mim com raiva sem parar de falar. Senti a raiva crescer em mim, e explodi, a chamando de louca, que ela estava mentindo. 

“O celular é meu, olha só!” Não fazia sentido nada daquilo, as pessoas em volta, as armas viradas pra mim, os olhares, todos aqueles olhares me culpando. E tudo que tinha que fazer era ligar meu celular e mostrar que era meu. Mas ele não ligava. A turba em volta gritava e ria, alguns garotos que estavam a caminho de casa com suas pipas e carreteis na mão me olhavam sérios. 

“Destrava ele pra mim, quero ver” disse o policial….

“Acho que a bateria acabou…” falei… enquanto tentava ligar mais uma vez o aparelho. 

Um outro homem chegou perto e começou a falar

“Eu vi ele pegando o celular, certeza que é roubado!”

“O QUÊ!? Você não viu PORRA NENHUMA!” 

Os policiais me seguraram, torcendo meu braço e falando pra eu calar a boca, a multidão em volta se agita, gritando xingamentos e me acusando “Se fodeu, ladrãozinho de merda!” “rodou em, seu preto safado”, “Roubando de mulher né seu escroto covarde!” Enquanto o homem que havia me acusado desapareceu na multidão. 

Tentava me desvencilhar, me defender. Dizer que estavam errados, que não era nada daquilo. Que em casa, minha mãe me esperava para o jantar, que mais tarde tinha que ligar pra minha preta, que amanhã precisava estar cedo no trabalho… 

Me jogaram no chão e colocaram o peso sobre mim, estava imobilizado, e o celular não estava mais em minhas mãos, não conseguia olhar ao redor, só escutar os gritos e bagunça das pessoas. 

Não sei quanto tempo tinha passado, tinha perdido a esperança de ser escutado, e nesse momento, contra todas as regras que aprendi… chorei. Não conseguia parar, as lágrimas escorriam, e não conseguia dizer mais nada. Eu sentia dor pelos policiais me prendendo, mas o que doía mesmo era ser acusado de algo que não fiz, e ainda a ideia de ir preso e perder tudo que tinha. Principalmente, decepcionar minha mãe…

“Consegui ligar” ouvi a voz de um policial. Que saia da viatura com meu celular em uma das mãos e um carregador na outra. 

Entregou o celular para a mulher, que olhava para o celular com uma cara confusa.

“É esse seu celular, senhora? ”

“Quem é essa mulher ai?” Perguntou outro policial. 

Me lembrei do sorriso doce no olhar marcado de minha mãe, a foto que estava em meu celular.

“Meio “morena” demais pra ser você, moça…” Falou um cara atrás da mulher. 

“Olha, que safada… queria pegar o celular do garoto!” “Ela mentiu policial!”

“Senhora, você não falou que era seu? Olha direito na sua bolsa…”

Os outros PMs deixaram que eu me levantasse, olhei para o relógio da rua mancando 19h30. Levou mais de uma hora, para alguém duvidar daquela mulher, que tinha apenas o grito como acusação. 

Um moleque preto do nada gritou: Filha da puta!  E parecia estar chamando os outros moleques a se revoltarem.

Minha mãe sorria na tela do celular comigo e minha namorada, porque se fosse ao vivo acho que aquela mulher estaria morta. A insegurança que era expressada no rosto daquela mulher, as vozes dos garotos e o sorriso da minha mãe na capa me fizeram gritar ’Devolve o meu celular!’.

A multidão de repente mudou de lado e começou a se agitar ainda mais, um policial gritou “Solta o garoto’ e eu chorei tudo o que não tinha chorado durante a minha vida inteira quando do meio da multidão vi a minha mãe correndo na minha direção.

Por uns segundos, ou minutos, não sei dizer. Toda a nossa fragilidade ficou ali exposta, naquele instante eu não era mais uma ameaça, não era mais o suspeito. Mas para eles, eu não era uma vítima injustiçada… era apenas um preto que se safou.., para a minha mãe eu era só o seu filho e eu… me sentia um nada. 

Escrito por Kátia Moraes e Diogo Nogue

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